28 de junho de 2017

19 anos

E eu quase me esqueci. Lembrei-me há bocado, como num susto. E se eu me tenho esquecido?, foi o susto simultâneo ao susto de me ter lembrado mesmo a tempo.
O ano passado alguém me disse que eu me devia deixar de insistir nestas lembranças porque são dor e o relembrar do passado. Só que eu não quero esquecer. Que mal tem querer lembrar-me? Tudo bem que a morte da Mãe é dor infinita e inultrapassável mas a Mãe é a melhor coisa que me aconteceu na Vida e que me acontecerá num futuro a menos dezanove anos deste dia em 1998.
Engraçado pronunciar 1998. Um outro milénio, uma outra época. Também nós éramos outros e outra era eu. A Mãe ficou ali naquele tempo e naquela pessoa. Não se fez outra. Ali está, cristalizada para sempre naquela juventude que não envelheceu. Nunca penso como é que Ela estaria hoje. Não tenho essa curiosidade imaginativa. Olho-a como sempre a vi e endeuso-a como sempre a endeusei. Não há mal nestas memórias nem mal se em todos os dias de hoje eu me quiser lembrar Dela de uma forma diferente das vezes que me lembro Dela todos os dias e a todos os instantes.
Continuo a sentir a amputação, a orfandade e a tristeza de não a ter aqui connosco nesta dimensão. Sinto falta do seu toque quente e macio, do seu aroma morno que dizia um tudo Dela. Sinto uma falta enorme, como um vácuo, das nossas conversas que nunca mais se replicaram com ninguém, porque ninguém fala comigo com a profundidade de inteligência com que Ela falava. Há coisas que morreram com Ela e são incapazes de ressurreição. O espaço Dela pertence-lhe em absoluto e eu alegro-me por ter esta Mãe insubstituível. Se eu devia de me deixar destas lembranças? Claro que não. A minha Mãe é a maravilha da minha vida e isso traz-me felicidade mesmo que a dor nunca se arrede...

20 de junho de 2017

Halifax (Canadá): com sol

Out came the sun. Halifax transfigura-se sob o sol. O azul desponta, como se esperaria numa cidade plantada à beira-mar, que vive e respira o Atlântico. Do outro lado da baía, em Dartmouth, Halifax parece maior do que o que se presumiria. O skyline lembra o de Toronto visto da água. Azul é a palavra.
Azul profundo na água. Azul límpido no céu. A luminosidade é clara e limpa e, por isso, as cores salientam-se. A diferença destas cores vibrantes face às desmaiadas dos dias pardacentos é abissal. Quase parece um outro país. O sol opera uma espécie de mudança de dimensão e a cidade vivifica-se.
Apetece passear sem rumo, ver casas, bairros, pessoas só porque há sol e a cidade mudou. Sem gostar do frio e do mau tempo foi interessante ver Halifax entre o alfa e o ómega do tempo nublado e escuro e do tempo de sol e azul. Regresso ao Sul.

16 de junho de 2017

Halifax (Canadá): Sem sol

Sou como o Miguel Sousa Tavares: dêem-me o Sul, o imenso Meridião. Dêem-me os céus azuis e alegres do Sul. Porém, nem sempre o Sul é uma opção e muitas vezes há em que o Norte é destino.
Chegar a Halifax, como quem vai de Portugal, é épico pelo tempo que se demora e, depois, é a mudança total de estação ainda que estejamos no mesmo hemisfério. Sair com bom tempo e chegar ao Inverno é sempre uma estranheza.
Os céus cinzentos de Halifax lembram-me porque é que eu seria incapaz de viver tão ao Norte. Entristecem as fotos, a paisagem, o humor. Pergunto-me como é que os canadianos, perpetuamente neste clima de cinzas pardacentas, conseguem ser alegres e bem-dispostos, mais easy-going que os seus vizinhos a sul? São um bocado como os australianos que têm o sol do Sul. Aliás, entre os "nórdicos", estou em crer que os canadianos são, de facto, os que menos reflectem a frieza cinzenta do clima.
Halifax está na costa dos faróis da Nova Escócia. Aqui descansam os náufragos do Titanic, tão longe dos seus destinos de origem e do seu destino americano nos Estados Unidos. Aqui ficaram, numa terra rodeada das águas frias em que sucumbiram, para sempre envoltos em cinzento frio e húmido. Pensei nisso em Halifax, nesse destino de desconforto climatérico que os acometeu para o todo sempre.
Como em Málaga uns dias antes, vejo Halifax na pressa. Não é turismo ou lazer o que aqui me traz, pois nem turismo ou lazer aqui me trariam. Porém, fico contente pela oportunidade de conhecer esta cidade bem na costa do Atlântico Norte, bem no meio do Canadá distante da Europa, de Toronto e da fronteira com os Estados Unidos. Aqui estamos no território autóctone dos Mi'kmaq e lembram-nos de ter essa humildade sempre que olharmos para nós como brancos em solo não nosso.
É uma cidade simpática que se vê e conhece numa manhã, com tempo de sobra e passo descontraído. Como os canadianos, é uma cidade friendly engolfada pelo cinzento do Norte e, por isso, ganhamos-lhe estima com facilidade, muita facilidade.

12 de junho de 2017

Uns instantâneos de Málaga

Esta coisa de ver uma cidade à pressa às vezes até nos traz algumas surpresas inusitadas como os meus pés irem dar, sem querer ou planear, ao centro onde ocorre o Festival de Cinema de Málaga, essa montra e mostra do cinema espanhol.
E assim me pus a imaginar o Banderas, esse malaguenho que associamos às procissões da Semana Santa nesta cidade da sua naturalidade, entrando na red carpet mais o Bardem e a Penélope Cruz. E, enquanto os meus pés percorrem sem destino a cidade, o que mais me encanta é o que essa deambulação me deixa ver. Ao pôr-do-sol mediterrânico, a cidade alaranja-se e doura-se. Inspiro e fico contente por ter tido estas breves horas de descoberta.
Hasta siempre, Málaga!

8 de junho de 2017

Málaga histórica, versão "digested"

Sabemos sempre que nos aproximamos das atracções de uma cidade quando o turista passa a ser servido do habitual cardápio da compra de bugigangas e quinquilharias chamadas souvenirs. Compro duas t-shirts para os meus sobrinhos (porque, à laia de colecção, lhes trago t-shirts de todos os sítios onde a Tia vai) e está a coisa feita. Sigo.
Málaga teve azar (muito). Trazendo na mente a imponência de Salamanca e a elegância de Segóvia, é injusto que na minha mente aflore a comparação entre o centro histórico de uma cidade balnear como Málaga com cidades Património da Humanidade. Málaga tem o que tem e as comparações são, ou deveriam ser, inúteis. A catedral está incompleta e isso foi transformado em atracção que singulariza Málaga, uma singularização que, paradoxalmente, também a diminui. Monumental não tem a monumentalidade que trago ainda bem viva nos olhos. Procuro outras coisas neste pôr-do-sol que vai colorindo a cidade de dourado.
O Álcazar árabe levanta-se, literalmente, dos escombros romanos. Há aqui qualquer coisa de norte de África, lembro-me da Tunísia, e da Andaluzia de Granada e Córdoba mas, outra vez, sem a monumentalidade.Até o cheiro é entre o andaluz e o norte-africano: um cheiro acre a gatos e a animais de rua, a calor residual sobre pedras que preferiam não ser incomodadas pelos pés do futuro voyeur, mais interessados nas selfies do que no que elas, as pedras, teriam para contar.
Pouco me detenho e vou ainda à procura de uma Málaga que não me mereça comparações, uma Málaga única que eu, nesta pressa, possa levar na memória.

5 de junho de 2017

48 horas em Málaga

Quando chego a Málaga, à uma e tal da madrugada, já está aberto o check-in para o voo de regresso. Vão ser 48 horas velozes, frenéticas. Quando chego ao aeroporto de Lisboa para embarcar rumo a Málaga no avião da noite até o cheiro a aeroporto me incomoda. Incomoda-me os controlos de segurança, as vistorias constantes à minha pessoa passageira. Incomoda-me a "turistagem" (eu que tantas vezes o sou). Incomoda-me as esperas, os portões de embarque, a viagem em si. Numa palavra: "Ugh!"
O avião que faz a ligação Lisboa-Málaga é um autocarro pequenino e claustrofóbico de duas hélices. A meu lado e à minha volta, um grupo de sete espanholas muito audíveis que vieram passar uns dias a Lisboa. No meu colo uma tese de doutoramento de 3kgs que eu não enfiei na mala porque a guardo com a vida denuncia-me e em menos de nada a espanhola ao meu lado mete conversa, a conversa que vai durar os 75 minutos do voo. Antes de me dar conta, fui adoptada pelo grupo. Uma vez por ano fazem uma viagem na qual é proibido falar de filhos e maridos. Dão-me dicas do que fazer em Málaga como se eu lá fosse estar uma semana. Escrevem nomes de restaurantes, de vinhos e comidas, de monumentos, de esplanadas, de terrazas, de tudo o que lhes diz Málaga.
- Pero sólo tengo dos dias! - nem ouvem. E assim passo o voo, metida nas suas conversas e parte da algazarra geral que é viajar no meio de nuestros hermanos, tão vocais, tão animados.
Aterro num aeroporto onde o alemão domina e penso, como muitas vezes já pensei noutros locais idênticos e dominados pelo turismo, o que pensarão os nativos quando a sua língua se submete a idiomas de visitantes. Ainda pintam o espanhol numa cor diferente mas não deixa de ser a terceira língua. Imagino-me já numa cidade Birkenstock, mochilas às costas e turistas nos seus anos dourados em busca de sol. Adiante.
Depois das obrigações que aqui me trazem, tenho umas breves horas para ver a cidade a passo rápido. Turista. Seja. Deambulo por uma cidade tipicamente andaluz e tão diferente das cidades onde estive há meia dúzia de dias em Castela-Leão. O céu é baço e a cidade incaracterística nos seus prédios altos, no grafitti gigante e omnipresente, nas beatas no chão. Tento encontrar algo que dê a meus olhos a alma de Málaga nesta hora de ponta tardia da saída de trabalhos e empregos em que me misturo na rua com os malaguenhos que esperam autocarros e andam apressados no regresso a casa. Vou em contra-mão. Eles saem do centro da cidade, eu vou para o centro.
Procuro o casco histórico da cidade e, bem à frente da catedral inacabada da Málaga, La Manquita, por lhe faltar uma das torres, depara-mo com uma manifestação LGBT em fase de debanda. Noto a ironia, quiçá propositada. A cidade vai parando e eu ainda a quero conhecer.
A cidade vai parando e eu com pressa de conhecê-la...

1 de junho de 2017

Salamanca: As chaves e o diabo

Tinha lido, nesses prospectos turísticos a que uma pessoa deita o olho antes de sair em viagem, que ia ver muitos cadeados em Salamanca. É verdade. Diz-se que são cadeados de amor, juras eternas que chave nenhuma poderá abrir. Atribuo a tradição a uma cidade de estudantes. amores jovens e ingénuos de quando se pensa que a Vida é imutável e o amor eterno. Há uns anos poderia ter acreditado nessas coisas. Agora racionalizo-as à distância com que a Vida me vai colocando de tempos ingénuos e olho para os cadeados como curiosidades, puerilidades quase, que vejo apenas e só com olhos de turista. E depois há o diabo.
Conta a lenda que o diabo aprecia numa cova numa viela húmida aqui em Salamanca. Prometia coisas de diabo: conhecimento, saber, a altivez da sabedoria, essa altivez tão tentadora. O homem sucumbe porque é da sua natureza sucumbir e o diabo alegra-se por nos saber tão fracos de espírito, tão crédulos e tão tolamente ambiciosos. Fausto não era só alemão. Faustos estão em todo o lado e, numa cidade dedicada à Universidade e à Catedral, que sítio melhor para encontrar o diabo e as suas tentações de sabedoria e imortalidade? que sítio mais apropriado à tentação laica e à tentação religiosa? Que sítio mais sublime para o diabo?